terça-feira, 19 de novembro de 2013

A Travessia












As primeiras memórias vêem  dos tempos em que colectávamos conchas na praia e juntas passávamos horas transformando os dias de sol em colagens. O que mais me fascinava era ver as conchas, puros elementos da natureza, coladas lado a lado se transformarem em outras formas, num acto de cumplicidade entre mãe e filha. Para ela, talvez o início das colagens mais tarde feitas com outros materiais. Para mim, aos 6 anos, o despertar para a arte, espontânea  e conectada com a natureza.


A sua primeira visita à Ar.Co, escola de arte, foi feita comigo de mão dada. Ficava em Alfama, perto de casa, na rua dos nossos passeios. Visitamos os estúdios, conhecemos os mestres, e eu fascinada olhava as paredes caiadas de branco. Esse branco que se tornou no cenário de uma nova etapa cheia de cores, para ela e para mim. Aos dez anos, eu ouvia dela as descrições de cada aula que tinha sobre a luz e a cor às quais eu respondia com os meus olhos a brilhar. Para mim intrigante, para ela uma viagem ao encontro da sua arte.



Orgulhosa, via-a também ser administradora de uma revista e receber o primeiro prêmio numa exposição. Mas logo a seguir veio o exílio. Juntas fizemos a travessia. Chegamos ao Brasil. A arte se transformou numa forma de sobrevivência, não só como ganha pão, mas também como equilíbrio emocional.



Por onde trabalhou arranjou sempre maneira de nos expor à arte. As aulas de Ballet que ela acompanhava proporcionaram a mim e à minha irmã horas de dança sem fim. O conservatório onde ensinou abriu portas para que todos os filhos aprendessem um instrumento.



A nossa casa se tornou num espaço de artistas de várias áreas, pessoas de várias cores e tendência políticas. Todos eram bem-vindos. Se tinham um instrumento tocavam.  Se eram actores a casa era seu palco. Se ainda não conheciam seu dom eram convidados a ser gente. No chão, os panos de cor que ela cortava, costurava, montava e nos dizia emocionada que estava a criar novos espaços. Penso que para nos ensinar a nunca ficarmos limitados às paredes da nossa realidade.



E assim crescemos, 5 filhos envolvidos em arte debaixo do amor desta loba mãe.



Os seus panos collage se transformaram em inúmeras exposições muitas vezes acompanhadas de outras artes, música, dança, artes marciais. Nascia o projecto cor, som e movimento. Em cada profissional que conhecia um amigo que adicionava, em cada aluno que tinha um filho que adoptava. Em cada pessoa que tocava uma transformação.



Foram 13 anos de muita luta, muita adversidade, muito trabalho e muito crescimento sempre vivido com muita exuberância.



Mas era tempo de mais uma travessia desta vez rumo à terra mãe. Primeiro eu, depois ela. Lembro-me ainda da sua dor ao deixar no Brasil os filhos homens. Mas o mar e o amor nos unia e a vida apresentava novos desafios.



Em Lisboa retomou suas actividades de ensino de música em paralelo com as artes plásticas. Novos amigos, novos projectos, metafísica e conhecimento. O mundo se expandia.



A dois anos da reforma uma bolsa para fazer mestrado.
Entre o Brasil, Portugal e os Estados Unidos conseguiu reunir os elementos que precisava para concretizar este desafio. Nos últimos anos dividiu-se entre os filhos nos três países e onde continuou a plantar novos projectos.



Em 2004 surge a poesia.
Palavras Soltas.
Em 2010 o primeiro livro.
Em 2012 partiu ... sem aviso prévio.
Sempre a nos surpreender.



Mas um ser como este não desaparece.
Multiplica-se através de nós,
Dando um novo significado ao lado de lá.



Hoje, retorna connosco ao Porto, terra onde nasceu.



 Leonor Alvim Brazão








 Maria Leonor de Mello Miranda Mendes Pereira e Alvim

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